«Esta não é propriamente uma doença nova; podemos, sim, dizer que é uma doença da abundância», Gil Faria, cirurgião
Celebra-se hoje o Dia Nacional de Luta Contra a Obesidade que visa sensibilizar a população para o problema da obesidade e das doenças associadas, bem como das consequências para a saúde.
Por Sandra M. Pinto – Fonte: Forever Young
A efeméride, assinalada no penúltimo sábado do mês de maio, tem também como objetivos promover a prática de exercício físico para prevenir o aumento da obesidade e incentivar a adoção de hábitos alimentares saudáveis. Para perceber os contornos desta doença falámos com o cirurgião Gil Faria.
Considerada pela Organização Mundial da Saúde uma epidemia, a obesidade afeta de forma negativa a nossa longevidade e qualidade de vida. «Nós estamos habituados a pensar na obesidade e a associá-la apenas à alimentação, mas existem diversos fatores sociais que vão favorecer o aumento da obesidade na população», alerta Gil Faria, cirurgião especialista em Cirurgia da Obesidade e Metabolismo, Coordenador dos Centros de Tratamento da Obesidade do Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, e do Grupo Trofa Saúde. Professor da FMUP e investigador clínico na área da Cirurgia Metabólica e Obesidade.
A obesidade é um dos problemas mais importantes que a Saúde Pública enfrenta no mundo. A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera que, atualmente, nos países desenvolvidos, ela seja um dos principais problemas de saúde a enfrentar. Por que é que as pessoas estão a engordar tanto? De onde vem o “desespero” pela comida e a dificuldade em perder peso?
Sendo um problema crescente de saúde pública nos países desenvolvidos e em vias de desenvolvimento, a obesidade não é propriamente uma doença nova. Podemos, sim, dizer que é uma doença da abundância. Sempre que uma pessoa (ou um grupo de pessoas) teve acesso fácil aos alimentos, esteve mais em risco de poder desenvolver obesidade. Se olharmos, por exemplo, para os retratos dos nobres medievais, em comum, tinham o facto de ter obesidade. Isto resulta do organismo humano (e da maior parte dos outros mamíferos, pelo menos) ser muito eficiente do ponto de vista energético e muito capaz (fruto da seleção natural) de sobreviver em ambientes com grande carência alimentar. Para conseguir sobreviver nesses ambientes foram sendo selecionados, ao longo de muitas gerações, genes que permitem uma otimização do equilíbrio energético: apenas os indivíduos capazes de sobreviver em ambientes de carência conseguiram chegar à idade reprodutiva e passar os seus genes à descendência. Hoje em dia, essa “otimização” energética está desalinhada com a produção de alimentos em escala industrial e ao “fácil” acesso à alimentação pela maior parte da população. Esta abundância de oferta faz com que a adaptação energética (que nuns indivíduos é maior do que noutros) acabe por levar ao desenvolvimento da obesidade. Do ponto de vista da fisiologia humana não é “natural” a perda de peso pelo organismo. A obesidade resulta desta interação entre o património genético, a organização da sociedade e o acesso à comida e, obviamente, comportamentos individuais.
Como avalia o problema da diabetes em Portugal?
A diabetes é uma patologia que surge sempre a par da obesidade. A sua origem é comum (a resistência à insulina) e ambas se agravam mutuamente. Assim sendo, não é de espantar que em Portugal (tal como no resto do mundo ocidental) tenha existido um aumento de mais de 3 vezes na prevalência da diabetes, juntamente com o aumento da prevalência da obesidade. É uma das principais patologias causadoras de perda de anos de vida e de múltiplas complicações, nomeadamente do foro cardiovascular. Desta forma, é importante uma luta conjunta, contra a diabetes e a obesidade.
Geralmente os obesos são vistos como pessoas de caráter fraco, o que é injusto, não lhe parece?
Absolutamente. As pessoas com obesidade são, habitualmente, caracterizadas como fracas de carácter e associadas a dois comportamentos que constituem pecados mortais: a gula e a preguiça. Tal não pode estar mais longe da verdade. Não existe nenhuma associação entre a obesidade e a preguiça ou défices de carácter. Como em todas as outras condições, haverá pessoas com obesidade de bom e mau carácter, preguiçosas ou ativas, gulosas ou “enfastiadas”. No entanto, nós, como sociedade, temos uma ideia preconcebida que a obesidade resulta de maus comportamentos e que se consegue reverter, corrigindo os comportamentos. Todos nós olhamos de lado quando estamos na fila dos gelados e vemos lá uma pessoa com obesidade.
Criticamos o seu comportamento, mas não o de outros que lá estão também e não têm problemas de peso. No fundo, o que criticamos é o resultado do comportamento e não o comportamento em si. Comer um gelado, um bolo ou um hambúrguer é tolerado em pessoas com peso normal, mas criticado como a fonte de problemas em pessoas com obesidade.
Por outro lado, está comprovado que, do ponto de vista biológico, as pessoas com obesidade têm níveis mais elevados de uma hormona associada ao apetite: a grelina. Portanto, se conseguirmos medir a “fome”, podemos dizer que estas pessoas têm, objetivamente, mais fome e, por isso, vão ter um aumento da ingestão alimentar.
E a prática de estilos de vida saudável também é muito mais difícil neste grupo de pessoas. Dizermos a alguém que pesa 130 ou 140kg que precisa de ir fazer exercício é pouco realista. São pessoas, na sua generalidade, com muitas limitações físicas, em que o simples caminhar é um desafio. As pessoas com obesidade, ao invés de carácter fraco, têm uma extraordinária resiliência, que lhes permite enfrentar todos estes desafios.
E a prevenção? O que falta fazer?
Não tenho respostas “mágicas”, mas é preciso apostar muito na prevenção. A obesidade em crianças e jovens está a aumentar a um ritmo superior aos adultos. E as crianças com obesidade serão os adultos com obesidade. Uma vez instalada a doença, a sua reversão é muito difícil. Daí que a grande aposta tenha de ser na prevenção. Na promoção de estilos de vida saudáveis, logo desde a infância. Na promoção de atividade física e, de uma alimentação saudável que valorize a dieta mediterrânica. Na promoção da conciliação da vida profissional com a vida familiar; de garantir que as pessoas têm tempo para fazer exercício físico, para ir às compras com tempo e disponibilidade mental (e económica) para fazer escolhas saudáveis.
Temos de repensar as nossas cidades. A mobilidade urbana: o andar a pé ou de bicicleta que são comuns por essa Europa fora, em Portugal são muito difíceis por questões de planeamento urbano. A ausência de parques no centro das cidades; a concentração em shoppings, entre outros aspetos.
Nós estamos habituados a pensar na obesidade e a associá-la apenas à alimentação, mas existem diversos fatores sociais que vão favorecer o aumento da obesidade na população.
Como se determina que a pessoa tem excesso de peso ou obesidade?
A Organização Mundial de Saúde definiu que obesidade é a existência de um índice de massa corporal (a relação entre o peso e a altura), superior a 30kg/m^2. Este índice não é perfeito, uma vez que alguém que seja muito musculado pode ter índices muito elevados, sem que tenha obesidade. Mas para a maior parte da população é uma boa forma de definir obesidade. É certo que não entra em linha de conta com a avaliação da adiposidade (a quantidade de tecido adiposo) individual ou a sua consequência a nível de saúde. Mas apesar de imperfeito, este índice correlaciona-se de forma muito eficaz com a carga de doença e com o agravamento do prognóstico de muitas outras patologias associadas à obesidade.
É verdade que quanto menos poder económico uma pessoa tem maior é a tendência para comer mais gordura e carboidrato?
Sim, embora não seja uma “tendência”. É uma necessidade. Visto que as comidas com elevados índices de gordura e hidratos de carbono são mais baratas, mais disponíveis e de confeção mais rápida, acabam, muitas vezes, por ser uma escolha mais fácil para as pessoas com menor poder económico. Imagine a mãe (ou o pai) que chega a casa às 19h, depois de um dia inteiro de trabalho, e que ainda tem de tratar dos filhos e preparar o jantar para a família. É muito mais cómodo, rápido e económico aquecer alguma comida pré-processada do que ainda ir comprar alimentos frescos e preparar uma refeição com proteínas e vegetais. Isto é um dos problemas que só se resolve com uma melhoria global das condições socioeconómicas e com a possibilidade de as pessoas terem mais tempo dedicado a si e à família.
Existem vários tipos de obesidade?
Na sua maioria a obesidade é aquilo que se designa de obesidade essencial. Ou seja, uma obesidade sem um fator específico desencadeante. Em alguns casos raros, podemos atribuir a obesidade à utilização de alguns medicamentos (que vão desregular o sistema hormonal) ou a alguns défices genéticos específicos. Isto constitui uma pequena minoria dos casos de obesidade.
A obesidade essencial tem é diferentes graus de expressão e de gravidade. O mesmo excesso de peso em pessoas diferentes pode causar níveis de morbilidade distintos e um diferente impacto na qualidade de vida.
Antigamente o tecido adiposo era considerado um tecido inerte, um mero depósito de células gordurosas que acumulavam energia para ser queimada num momento de necessidade. Esse conceito mudou completamente ou mantem-se o mesmo?
O tecido adiposo é, hoje em dia, considerado um tecido vivo. Tem um papel de armazenamento de energia, mas também tem a função de produção de hormonas, associadas ao metabolismo energético, à fome, à saciedade, à imunidade, à regulação hormonal, entre outras. E desta interação entre o tecido adiposo e o organismo resultam também dificuldades na perda de peso, dada a tendência para preservar a existência de determinado nível de gordura corporal.
Quando a pessoa perde gordura, a leptina cai. Nesse caso, o que acontece à fome?
Aumenta. O organismo vai tentar defender-se contra a perda de peso. E a forma mais imediata de isso acontecer é aumentando a fome. A fome é uma forma de o organismo sinalizar um défice energético e de despoletar uma série de comportamentos que vão culminar na ingestão alimentar. A fome é um mecanismo fisiológico primitivo e tão fundamental como a respiração ou a regulação da temperatura corporal. Sentir fome não é um ato “cognitivo”; não depende do pensamento, antes sendo regulado por uma complexa interação entre hormonas produzidas no tecido adiposo, no tubo digestivo, no pâncreas ou no fígado e a sua atuação a nível cerebral, em áreas primitivas do sistema nervoso e não dependentes do pensamento.
A obesidade aumenta o risco de outras doenças? Se sim quais?
Sim… muito. Aumenta o risco de doenças em todos os aparelhos e sistemas humanos. Aliás, diria que aumenta o risco ou as complicações de praticamente todas as doenças que possamos pensar. As mais “clássicas” são a diabetes tipo 2, a hipertensão arterial ou as alterações do colesterol. Mas também aumentam o risco da maior parte dos cancros, das complicações das doenças cardíacas ou pulmonares, da insuficiência renal, da incontinência urinária, do ovário poliquístico, do refluxo gastroesofágico, das doenças osteoarticulares degenerativas, da apneia do sono, da asma, da psoríase, etc. Poderia continuar interminavelmente… O que todas estas doenças têm em comum é que melhoram quando tratamos a obesidade. Assim, torna-se fundamental colocar o tratamento da obesidade como uma das prioridades nos doentes com múltiplas patologias.
Qual é a sua opinião sobre a utilização de drogas nos tratamentos contra a obesidade? O tempo de duração desses tratamentos tornou-se numa discussão importante para a ciência?
Os novos fármacos para o tratamento da obesidade vieram comprovar que, de facto, a obesidade é uma doença. Enquanto não tínhamos tratamentos eficazes ou estes passavam por cirurgias, continuava-se a pensar que a obesidade era uma doença do comportamento. Que os tratamentos conservadores não funcionavam por “culpa” dos doentes (que não cumpriam) ou que as cirurgias funcionavam apenas porque obrigavam os doentes a ter um comportamento mais adequado. Com o advento dos fármacos para tratar a obesidade, comprovou-se que ao alterar o funcionamento de uma hormona produzida pelo intestino, conseguimos alterar o comportamento da pessoa e conseguimos alterar o seu metabolismo de forma a que não contrarie a perda de peso. O doente vai comer menos não por obrigação de comer menos, mas porque tem menos apetite; porque fica satisfeito com menor quantidade de comida. E vai perder peso, porque o organismo “entende” que o seu ponto de equilíbrio metabólico é num nível diferente (e inferior) do atual.
Portanto, se comprovamos que a obesidade é uma doença, temos obrigação ética e moral de utilizar os tratamentos que sejam mais eficazes; sejam eles farmacológicos ou cirúrgicos.
A duração do tratamento farmacológico ainda é alvo de muito debate, mas a versão mais aceite é a de que será um tratamento para a vida. Da mesma forma que não podemos tratar a diabetes durante algum tempo e parar o tratamento, também não poderemos tratar a obesidade durante algum tempo e parar o tratamento. No tratamento da obesidade, o fundamental não é reduzir o peso, mas corrigir o distúrbio metabólico que levou ao aumento de peso.
Os fármacos são importantes, assim como a mudança de comportamentos de risco. Mas, olhando para a prática clínica, o que deve ainda melhorar para que haja uma individualização de cuidados?
Temos ainda de conhecer muito melhor a doença da obesidade. Temos de perceber porque é que algumas pessoas têm excelentes respostas ao tratamento farmacológico e outras mantêm a doença, mesmo após o tratamento cirúrgico mais poderoso.
Importa perceber que os mecanismos de regulação energética são muito complexos e não dependem apenas de uma hormona, mas de centenas delas, que poderão ter expressões diferentes em vários doentes. E temos de perceber ainda que o mesmo comportamento por parte de duas pessoas diferentes, vai levar a dois resultados distintos. A obesidade é uma doença crónica e, portanto, temos de “empoderar” o doente para que consiga ir controlando a sua doença; o que pode passar por várias fases… Pode precisar de alteração do estilo de vida, de medicamentos ou de cirurgia. Alguns precisarão de todos estes tratamentos em simultâneo; outros apenas de um. Infelizmente, a ciência ainda tem mais perguntas do que respostas…
Quem é que engorda mais facilmente e quem tem maiores dificuldades para perder peso, os homens ou as mulheres?
Não existe uma diferença significativa entre os sexos. Em Portugal, a obesidade é ligeiramente mais frequente nas mulheres e o excesso de peso nos homens. Mas não se conhecem mecanismos que justifiquem diferenças significativas entre sexos na expressão ou na gravidade da obesidade.
Como combater o excesso de peso e obesidade?
Do ponto de vista populacional, temos de pensar que a única solução passa pela prevenção. Não será possível tratar os cerca de 30% de doentes com obesidade que se espera para 2030 com métodos cirúrgicos ou com os fármacos de que dispomos atualmente.
Do ponto de vista individual, temos de oferecer planos de tratamento personalizados, que podem passar por diversos componentes ou diferentes fases. Sabemos que nos casos mais graves de obesidade (Obesidade classe 2 ou 3), o tratamento cirúrgico será o mais eficaz e aquele que tem uma melhor relação de custo/eficácia. Mas também sabemos que, atualmente (em todo o mundo), apenas chegam ao tratamento cirúrgico cerca de 1% de todas a pessoas com indicação formal para esse tratamento, seja por problemas de acesso ou de aceitação da cirurgia.
A genética é responsável por que percentagem do número de casos de obesidade? Tem noção?
Por muito poucos, mas simultaneamente por todos. Ou seja, os casos de obesidade “monogénica”, em que existe um gene responsável pela obesidade são muito raros (<3% de todos os casos de obesidade). Por outro lado, para que a obesidade se desenvolva, é necessária a presença de um património genético suscetível. Para que os efeitos do ambiente e do comportamento se desenvolvam é essencial que o indivíduo já tenha predisposição genética para a expressão da doença.
As crianças são um grupo de risco para o excesso de peso e obesidade?
Sim. Acima de tudo porque uma criança obesa irá ser um adulto obeso. E é uma idade de grande plasticidade em todo o organismo. Em que é possível ocorrer grande adaptação metabólica (para o bem e para o mal). Por outro lado, também sabemos que a ocorrência da obesidade em idades muito jovens está associada a grande carga de anos de vida com saúde perdidos e ao desenvolvimento mais precoce e de formas mais graves de outras doenças, como a diabetes tipo 2 ou a aterosclerose.
Mas muitas vezes vemos casais obesos com filhos pequenos também obesos…um problema de educação?
A penetrância da doença na mesma família, em todas as outras doenças conhecidas, sugere um problema genético. Na obesidade não conseguimos deixar de pensar que está associada ao comportamento. Aqui está uma das expressões em como o preconceito está enraizado em todos nós. Obviamente que os comportamentos dentro da mesma família tendem a ser semelhantes…tal como os genes. Portanto, diria que em casos de casais com obesidade tem de haver um cuidado excecional com a educação e com a indução de comportamentos nas crianças, porque estas estão em particular risco de virem a sofrer de obesidade, mesmo com uma otimização do comportamento. É uma relação difícil entre genética e ambiente, mas é muito redutor atribuirmos todas as culpas a um dos lados (seja à genética, seja ao comportamento).
Na sua opinião, como acha que o problema da obesidade vai ser resolvido no futuro?
Idealmente vamos ser capazes de modular a expressão dos genes que favorecem o desenvolvimento da obesidade. Vamos ser capazes de alterar esses genes ou controlar a sua expressão, de forma que seja menor a tendência para acumulação energética, que durante tantas e tantas gerações nos ajudaram a prosperar. A pedra de toque da luta contra a obesidade será a prevenção; é mais eficaz prevenir o desenvolvimento da doença do que “andar atrás do prejuízo” e tentar controlar o metabolismo que está desregulado do ambiente em que vivemos.